terça-feira, 29 de outubro de 2019

Concurso Internacional de coros de Riva Del Garda - Itália "In Canto Sul Garda"

Título do Evento: Concurso Internacional de coros de Riva Del Garda - Itália "In Canto Sul Garda"
Entidade Organizadora: Meeting Music - Hungria
Ano: 2019
Componentes:
Sopranos: Elisa Bernardes, Giana Araujo, Letícia Gonçalves, Micheli Viégas
Contraltos: Ana Luisa Gouvêa , Carol Duarte, Erica Vilaça, Flávia Rodrigues, Márcia Godinho, Nina Fras
Tenores: Amilcar de Castro, Bruno dos Anjos, Guilherme Campos, Gustavo Campos, Mário Sampaio
Baixos: Francisco Carriço, Pedro Marcos, Ricardo Fraga, Roberto Fabri



Estávamos de volta aos ensaios, após a experiência fascinante em Riga. Um evento colossal, reunindo mais de uma centena de coros de todo o planeta, milhares de coristas, um exército de voluntários da comissão organizadora ... enfim, um evento digno de uma olimpíada coral.
Compartilhar o mesmo espaço e respirar o mesmo ar de ídolos como Jonh Rutter, Eric Whitacre, Morten Lauridsen, dentre muitos outros, foi uma experiência maravilhosa. Mas estávamos de volta aos ensaios e à nossa realidade de coristas cariocas. De volta à realidade e ao isolamento geográfico dos coros brasileiros.


De cara, pegamos o já assumido desafio de executarmos algumas músicas na Bienal Brasileira de Música Contemporânea e só fomos digerir a experiência de Riga tempos mais tarde.
Depois da Bienal, perdemos Duda, Jorge e Lina. Foram cuidar dos projetos pessoais e de suas carreiras musicais. Luizinho, em licença paternidade, saiu um pouco depois. Elisa e Flávia continuaram na Europa para finalizar o doutorado, e Ana entrou em licença pelo mesmo motivo. Uma vez mais, tivemos que reconstruir o grupo... mais um momento difícil.


Seguramos a barra com quem ficou e fomos, lentamente, recompondo as peças do nosso mosaico de vozes.
A primeira a entrar foi Carol. A vi cantando num concerto de formatura em regência coral da mãe dela. Senti de imediato que ela tinha a cara e a energia do Boca. Fiz o convite e ... bingo!!! Entrou como se cantasse conosco a vida inteira.
Carol trouxe a Micheli. Outra cartada certeira! Micheli também parecia uma componente fundadora do coro. Logo se entrosou com Pedro, e ambos assumiram o preparação vocal do grupo. Rapidamente mudaram para melhor o nosso som e o nosso modo de cantar.
Em seguida entrou o Bruno. Com aquele jeito tranquilão, uma facilidade enorme de juntar o som e uma linda voz, entrou para a família e não saiu mais.
Por último veio Francisco. Experiente, sensível e também com uma profunda intimidade musical com o Boca, amalgamou perfeitamente a sonoridade dos baixos e rapidamente já estava em casa no grupo. Depois chegou Mariana, que, por compromissos já assumidos não pode viajar ao concurso. Do mesmo modo que a Lívia, figura central na dinâmica do Boca, por estar grávida da Liz, preferiu uma licença sabática e dessa vez ficou num merecido repouso.
Ao longo de 2018, para nossa alegria, voltaram pra casa Ana, Elisa e Flávia.
Incrível, estávamos completos novamente, e prontos para sonhar com a nossa próxima aventura "Bocaleone"!

Passamos a buscar um concurso fora da alta temporada, para facilitar o custo da viagem. Uma vez mais, contar com ajuda pública ou privada era tarefa impossível. Nossa última experiência com o secretário de cultura de Niterói, Arthur Maia, tinha sido humilhante. Jurei nunca mais entrar naquele prédio da secretaria de cultura, tamanha foi a falta de educação e o desprezo por parte do nosso ex-secretário. Águas passadas!
Das possibilidades presentes, escolhemos o concurso de Riva del Garda, na Itália, pela conhecida tradição em agregar bons coros competidores em seu longo tempo de existência. Fato claramente comprovado nessa edição.  A beleza estonteante do lago de Garda, emoldurado pelas Dolomitas, também pesou na nossa decisão. Escolhemos cantar naquele paraíso, fato que, por si, já era um prêmio.

Como é tradicional, escolhemos o repertório com base nas regras do concurso, e nos inscrevemos nas categorias de música sacra e de música erudita. Nesse concurso, o grupo escolheu o Pedro e eu como regentes temporários. Dessa vez combinamos que Pedro assumiria toda a parte sacra e eu a parte erudita.
Amilcar, com sua admirável competência administrativa, assumiu, uma vez mais, a árdua e fundamental tarefa de diretor executivo da viagem, fazendo os inúmeros contatos burocráticos com a organização, gerenciando partituras, documentos, depósitos ... tarefa hercúlea, sem a qual seria impossível esse empreendimento.
Entramos de cabeça no preparo do repertório. Márcia, Gustavo, Caco, Nina, Pedro e eu assumimos a preparação das peças de concurso. Mário, Márcia e Micheli se dedicaram às peças não competitivas. Trabalhamos pesado na técnica vocal do Pedro e da Micheli, focando a melhor execução possível das músicas durante o evento.

No meio do ano, a maravilhosa notícias da medalha de ouro conquistada pelo São Vicente à Capella, na Áustria, sob a direção da nossa queridíssima amiga Patrícia Costa, nos encheu de orgulho e de esperança! A bela vitória desse nosso coro irmão, injetou uma boa dose de energia na nossa etapa final de preparação.

Um pouco antes dessa conquista, a possibilidade de não contarmos com Lívia e Mari no concurso, gerou uma enorme preocupação no naipe de sopranos, devido aos inúmeros divises presentes no complexo repertório escolhido. Entretanto, a dedicação e disposição das contraltos mais agudas, fazendo algumas linhas de sopranos permitiu que o projeto continuasse. Nina, Carol, Flávia, Ana e até o Bruno, se revezaram em apoio às nossas bravas sopranos, e tudo deu certo.

Fizemos diversos e importantes concertos, experimentando, gravando, ouvindo e observando o resultado das músicas escolhidas. Fizemos ajustes, mudamos concepções, estudamos a estética musical de cada peça, utilizamos a pintura e a história da arte para compreendermos melhor os diferentes estilos e, como sempre, muita autocrítica, muita conversa, muitas opiniões e, no final, o consenso ... bom, isso é o Boca que Usa: "o porco espinho".

Embarcamos no melhor estilo Rolling Stones: pequenos grupos em datas, empresas aéreas e roteiros de vôos completamente individuais. O importante é que na data combinada todos nós estávamos juntos no mesmo hotel em Riva del Garda, focados no concurso e embevecidos com a impressionante beleza do Lago de Garda.

Nossos bocudos não cantantes estavam lá, junto a nós, dando aquele apoio moral e operacional. Dona Heloísa, figura e talismã sempre presente em nossas viagens. Marcelo, veterano de muitas batalhas estava lá firme e forte! Nosso documentarista, fotógrafo, consultor enólogo, e detetive cibernético de personalidades ocultas!! Quantas descobertas surpreendentes!
Ganhamos pela primeira vez os reforços de Jairo e de Mariella, querida corista e amiga que está morando na Sicília. Francisco veio com Emília, também estreante nas nossas viagens internacionais. Foram fundamentais!

Dessa vez não tivemos a presença do Cândido, da Kel, nem de Ítalo e Greg. Mas Ludi e Elen voltaram a viajar com o Boca após as viagens boquianas para a Argentina. E trouxeram as crianças do "Boca Júnior": Manu, Clarinha, Joca, Gustavinho, Helena e Lucas. É incrível como as crianças dão alegria ao grupo.

 Depois chegou a tia Teca, da Nina, que veio diretamente da Ligúria para nos prestigiar. Torcida organizada e tudo nos concursos! Foi lindo!
Lucci e Lívia, mesmo distantes, nos acompanharam em tempo real pela internet. Parecia que estavam ali de corpo presente, dando força, sugestão, empurrando o grupo ... na verdade, estavam mesmo ali.
Finalmente ficamos num bom hotel, apesar de um pouco distante do centro. Mas os funcionários compensaram a distância com gentileza e dispuseram um espaço permanente para os nossos ensaios.
Logo chegamos e fomos desfilar no desfile das delegações internacionais pelas belas ruelas medievais do centro histórico de Riva del Garda. Festa total e muita alegria na delegação brasileira, com a farra de sempre. Como era por ordem alfabética de países, saímos na comissão de frente! Nenhuma mais bonita e mais animada que a nossa!
A comissão organizadora nos convidou para cantarmos duas peças no concerto de abertura, nessa mesma noite. Levamos música brasileira. Numa atitude já madura, entramos no palco num clima ótimo, com uma química bem legal. Fomos o quarto grupo a se apresentar.
Micheli abriu a nossa temporada italiana regendo belamente "Flor" da Monique Aragão. Pelos aplausos, sentimos que tínhamos atingido a plateia no coração. À medida que a música fluía, víamos que os ouvintes começavam uma imersão no nosso modo de fazer música. A formação em meia lua, só utilizada por nós, trazia a plateia para o palco. No fim da execução, já tínhamos o público em nossas mãos.


Em seguida, Márcia regeu o "Chovendo na Roseira". No nosso arranjo, iniciando com sons da chuva na mata atlântica, o ambiente tropical invadiu o ambiente alpino, trazendo para o Brasil os corações europeus. Foi uma experiência única. À medida que a bela harmonia de Tom Jobim entrava em cena, o público entrava na música conosco. Ao fim da peça, quando retornavam os sons da floresta tropical, percebemos que os ouvintes estavam no meio da floresta, juntos com a nossa música. 
Foi mesmo uma experiência inesquecível e deixamos uma ótima impressão no nosso primeiro concerto em terras italianas.
Mal tivemos tempo de dar uma respirada, e no dia seguinte, cedo, já estávamos no ônibus a caminho do "Casinó de Arco", para testarmos a acústica no palco onde ocorreria a competição de música erudita. O cassino é um prédio histórico, aos moldes de um palácio neoclássico, com um belo teatro em seu salão nobre. Vimos que a acústica nos favorecia, pelas nossas características vocais e de repertório. Poderíamos abusar das dinâmicas. O coro se ouvia muito bem e a sonoridade nos permitia exagerar nos pianíssimos.
Voltamos ao hotel, descansamos e no meio da tarde fizemos nosso último ensaio da categoria erudita antes do concurso. 

Toda a parte musical estava já exaustivamente trabalhada. Agora o foco era a questão interpretativa. Sem dúvida a mais complexa e a maís difícil de ser trabalhada. Necessitava de uma imersão subjetiva de todo o coro no conteúdo sensorial de cada música. Optamos por trabalhar com paisagens musicais. Water Night, nos direcionava a uma encantadora paisagem noturna, aquática, onde dois amantes sentiam e misturavam a força da paixão, com a força da natureza, em sintonia perfeita. Nina já tinha feito essa proposta durante a preparação e seguimos esse espírito. 

Em seguida, buscamos introjetar a força expressiva de Ofulú, com a energia da mistura de raças e de culturas do Brasil. Absorvemos e levamos em nosso coração a beleza do nosso país. Em seguida trabalhamos e mergulhamos nas paisagens sonoras dos textos de Shakespeare. A atmosfera de encantamento de Full Fathon, a concretude textual de The Cloud e a leveza flutuante de Over Hill se fizeram perfeitamente presentes. Finalmente, associamos a paisagem renascentista de Ecco às belas paisagens do lago de Garda. Caco tinha feito um belo trabalho de montagem dessa peça, e essa nova paisagem foi a cereja do bolo. Estávamos prontos para a prova do dia seguinte.

Acordamos cedo, colocamos nosso uniforme mais colorido, e seguimos para o Cassino de Arco. Notei, no café da manhã, uma tranquilidade e uma energia muito boa entre todos nós. Todos muito relaxados, sem stress, preocupados apenas em mostrar nosso trabalho. Durante o concerto de abertura, alguns coristas "concorrentes" fizeram algumas provocações do tipo " see you in the competition" ... etc. Lá na Europa, a galera vai aos concursos para competir mesmo. É "chumbo grosso"!  Entretanto, sempre acreditamos que a verdadeira competição é do coro com ele próprio. Esse sempre foi o nosso lema. Passamos por isso de forma divertida e jocosa.

Chegamos ao local, nos concentramos e ficamos aguardando a chamada para entrarmos em cena. fizemos o nosso tradicional "alfa", com falas maravilhosas de todos. Esse, sim, é sempre um momento mágico, de muitas emoções e confiança mutua. Na ordem, fomos o primeiro coro a concorrer. Situação complexa, pois um jurado jamais dará uma nota muito alta ao primeiro coro, já que ele não tem noção do que virá pela frente. Mas, por outro lado, sabíamos que uma boa apresentação colocaria uma espécie de "nota de partida" para os demais coros.
Entramos confiantes, cabeça erguida, sorriso no rosto e muita energia boa.
Entramos e cantamos Water Night com naipes misturados, como ensaiamos sempre. Os acordes extremamente dissonantes foram acontecendo de forma natural e sincrônica. As paisagens sonoras foram surgindo e, no final, sabíamos que o objetivo tinha sido cumprido. Aí veio Ofulú. Impacto total. trouxemos o Brasil para os Alpes e a energia fantástica da música afro-brasileira foi soberana. Os jurados abandonaram as partituras e acompanharam cada movimento do coro.

Segundos antes de iniciarmos a primeira canção de Shakespeare, que começa com sons de sinos, a velha catedral medieval de Arco, começou a trocar seus sinos: sentimos aí uma espécie de prenúncio do que viria. Uma nítida sintonia ente nós e aquilo tudo à nossa volta. As canções saíram muito bem, cada qual com sua diferente paisagem sonora. Algo extremamente desafiador. Mas tudo aconteceu conforme trabalhamos. Fato claramente comprovado na avaliação posterior, e mais que elogiosa, do júri aos regentes. Por último fizemos o renascimento italiano. Foi nítido que a paisagem do lago de Garda veio para o palco com toda a beleza e encantamento. 

 


Era clara a surpresa expressada no rosto da plateia, durante, e ao fim da nossa apresentação. Tivemos uma nota muito alta nessa peça. Fato que nos causou imensa alegria, tendo em vista que os dois jurados italianos são especialistas em musica renascentista italiana.


Vimos as ótimas apresentações dos demais coros e, além do constante aprendizado, notamos que a disputa seria dura. Mas voltamos ao hotel com a nítida sensação de metade do dever cumprido.
Demos folga a todos nessa tarde e a maioria foi explorar as belezas no entorno do Lago de Garda.

À noite voltamos ao teatro do "Casinó de Arco", onde compartilhamos o concerto com coros da Finlândia, Suécia, República Tcheca e Reino Unido. Foi uma alegria imensa ver tanta coisa boa. Apresentamos Purelle Tuulta, peça finlandesa, regida por Mário; Ecco mormorar, Flor e Ofulú. Mais uma resposta surpreendente da platéia, formada predominantemente por coristas. 
No dia seguinte, à tarde, Pedro assumiu a direção musical do Boca e passamos de forma bem criteriosa as peças sacras. Abrimos com Crucifixus a 8 vozes, uma bela e complexa peça de Lotti, curiosamente apresentada por outros coros do evento. 

Tinha sido trabalhada pela Márcia. Uma primeira parte bem complexa e dissonante, seguida de contrapontos. Em seguida fizemos os ajustes finais em O Magnum Mysterium. Peça já conhecida e que exigia uma performance vocal intensa. Fizemos um pouco mais lenta, como propôs Guta, em seu trabalho ao longo do ano, com um belo resultado interpretativo. Seguimos com Mirabile Mysterium, peça renascentista  de Gallus, cromática e muito impactante. Pedro trabalhou os cromatismos e os contrapontos.  Por último relembramos Ave Verum, de Imant Raminsh, anteriormente preparada pelo Caco e, na fase final, foi devidamente ajustada em seus diversos andamentos por Pedro.

Dormimos cedo, descansamos e nos preparamos para a parte final do concurso. Durante o jantar, Amilcar recebeu um comunicado da organização que faríamos parte do Grand Prix, uma mini competição que ocorreria durante a entrega de prêmios e na qual concorriam os coros que obtivessem uma pontuação acima de 24 pontos. Isso nos encheu de alegria, pois mostrava que tínhamos ido muito bem na parte erudita.
No dia seguinte, testamos cedo a acústica do teatro da Chiesa San Giuseppe. Ao contrário do Casinó, essa acústica não nos favorecia. Um mega espaço, com milhares de lugares e um teto muito alto. Muita dificuldade em ouvir os demais componentes. Fechamos um pouco a meia lua, mas mesmo assim a acústica não favorecia. Ficamos em uma pequena sala à espera de sermos chamados para a apresentação.

Subimos ao palco e fizemos uma meia lua mais fechada, fato que, apesar de melhorar um pouco a nossa escuta, não agradou visualmente aos jurados e, depois, fomos alertados para isso durante a avaliação feita pelos jurados aos regentes.
A apresentação de Crucifixus foi bonita, apesar de baixar ligeiramente a afinação. Perdemos pontos com isso. No Magnum Mysterium, também tivemos problemas com a baixa de afinação. Nada que comprometesse a beleza da peça, mas os diapasões do juri são imparciais...
Pedro dirigiu o grupo de forma competente e manteve o foco ao longo da apresentação. Fomos muito bem no Mirabile Mysterium e obtivemos uma pontuação muito alta. O mesmo ocorreu no Ave Verum. Fizemos uma apresentação emocionante nas duas últimas peças, onde a química boquiana voltou a funcionar. Saímos felizes com o resultado. Poderíamos ter ido melhor, mas nossa apresentação, mesmo com alguns problemas, foi suficiente para nos garantir o ouro na competição sacra.

Há que se louvar a dedicação e a entrega de Pedro. É sempre um desafio enorme reger um coro em um concurso internacional dessa envergadura. E Pedro, apesar de tão jovem, assumiu de forma corajosa essa empreitada e o resultado é que ele já traz em seu currículo de regente uma medalha dourada.
Ao sairmos da Igreja com os demais coros, nos deparamos com o simpático e competente coro feminino da Finlândia. Cantamos para eles "Purelle Tuulta", uma composição finlandesa  de Mia Makaroff. Foi um momento de extrema emoção e troca humana. Coisa que só é possível pela total quebra de fronteiras que só a música proporciona. Um belo momento de confraternização verdadeira e livre de qualquer espírito competitivo.
No fim da noite foi a cerimônia de entrega de prêmios. Não tínhamos preparado peças específicas para o Grand Prix e resolvemos repetir a dose com Flor e Chovendo na Roseira. As regras não permitiam o uso de peças já apresentadas na parte competitiva do concurso. Fomos com o intuito de nos divertirmos e de mostrar nossa música, já que não tínhamos preparado nada especial para esse evento. Mas o resultado foi bem legal. Quem ganhou foi o coro feminino da República Tcheca, dirigido por nada mais, nada menos, que o regente titular da Orquestra Sinfônica de Praga.

Enfim, chegou a hora da entrega de prêmios por categorias. Fomos ao palco eu, Pedro e Micheli, aguardando, junto aos demais diretores, o anúncio das premiações. A penúltima categoria foi a de música sacra. Quando vimos que recebemos o ouro, fizemos uma festa incrível na platéia! Gritos choros, saltos, abraços!! Sim, tínhamos atingido nosso primeiro objetivo!
Aí veio a entrega da categoria de coros mistos, música erudita. O nível estava muito alto e não sabíamos ao certo nossa colocação. 

No meio da tarde, na reunião entre juri e regentes, os jurados tinham feito muitas boas observações e muitos elogios à nossa forma de fazer música. Mas, para ganhar a categoria, o caminho era imenso. Primeiro anunciaram o coro da Finlândia, terceiro colocado. Em seguida anunciaram o coro da Suécia, o 
mesmo do " see you in the competition". Ficamos com o coração na mão, pois nesse tipo de competição, quando os coros não atingem o nível exigido, a premiação fica "deserta". Mas logo o coração disparou mais forte quando ouvimos que "a maior pontuação e vencedor do concurso é .... Boca Que Usa!!!!

Foi mágico! Em frações de segundo todas as memórias passaram pela cabeça, num resumo incrível de tudo que tínhamos feito, trabalhado, etc ... Lavamos a alma!

Daí para a frente foi só comemoração! Um coro da distante Latinoamérica, sem nenhuma ajuda financeira, apoiado apenas nos sonhos e desejos de seus cantores e de seus amigos, chegar na distante Itália e retornar com duas medalhas douradas, era a glória! É impressionante que cada medalha parece que é a primeira. 




Já tínhamos ganhado em concursos internacionais 6 medalhas de ouro e duas de prata. 
Mas parecia que era a primeira vez. Juntávamos nas nossas comemorações a alegria de muita gente que em tempos passados abriram caminhos para esse novo acontecimento. Amigos do canto coral que seguem sempre junto a nós nessas longas caminhadas em prol da cultura coral em nosso país. Gente que sonhou conosco e que ganhou junto essas medalhas.

O resto, foi e ainda é, pura comemoração. Mas essa história já está sendo contada. Agora o que importa é construir uma outra história. Já estamos sonhando com novos desafios. Vamos adiante  com esse incrível coral "Bocaleone"!!!

Boca Boca Boca, Leon, Leon, Leoone!!




terça-feira, 3 de outubro de 2017

Grand Prix of Nations - Riga Latvia (Letônia) 2017




Título do Evento: Grand Prix of Nations 
Entidade Organizadora:  INTERKULTUR- Alemanha


Ano: 2017

Componentes:
Sopranos: Elisa Bernardes, Giana Araujo, Letícia Gonçalves, Lina Santoro, Lívia Natividade
Contraltos: Ana Luisa Gouvêa, Erica Vilaça, Flávia Rodrigues, Márcia Godinho, Nina Fras
Tenores: Amilcar de Castro, Guilherme Campos, Gustavo Campos, Mário Sampaio, Vitor Brum



Baixos: Duda Guterres, Luioz Carlos Peçanha, Ricardo Fraga, Roberto Fabri




Um ano já tinha se passado do concurso de Calella. Voltamos de Barcelona com muitos compromissos de concertos e eventos. Um ano de grandes comemorações, mas em meados de 2015 nos reunimos para traçarmos as próximas metas de concursos internacionais. Barcelona já fazia parte do passado. 

Os prêmios, a primeira colocação e a pontuação obtidas no “Canta El Mar” possibilitou nossa entrada, por 5 anos, em qualquer evento competitivo promovido pela Interkultur, a forte organização internacional de eventos corais.

Lina e Caco com um bebê a caminho, decidimos que eles ditariam o ritmo da viagem: quando e onde nós iríamos. O sinal deles foi para 2017. Numa viagem com bebê tinha de ser no verão, é claro.  Nos debruçamos nas diversas possibilidades e todos ficamos seduzidos pela possibilidade de irmos ao Grand Prix das Nações, que em 2017 seria realizado  em Riga, na Letônia. De cara, três desafios. O primeiro era que o verão encarecia por demais as passagens e hospedagens. O segundo era o nível altíssimo que encontraríamos lá, exigindo do Boca uma preparação e uma complexa escolha de repertório que não nos colocasse em desigualdade vergonhosa frente aos grandes coros, que fatalmente encontraríamos, e aos principais jurados mundiais. 
Terceiro, era a possibilidade única de cantarmos em Riga num concurso realizado na cidade referência do canto coral mundial, onde as crianças, muitas vezes, aprendem nas escolas maternais a solfejar, antes mesmos de serem alfabetizadas.  Pesamos na balança os prós e os contras e decidimos encarar mais uma aventura “Bocaleone”. Sem dúvida um passo muito largo na nossa longa caminhada.
Ao retornarmos de Barcelona enfrentamos quatro perdas muito severas no nosso núcleo fundamental de cantores que foram fazer doutorado fora do Brasil. Lucci foi para os Estados Unidos, Flávia para a Inglaterra, Jero foi para Nova Zelândia e, no fim, Elisa foi para a França. Podemos dizer que a perda foi de cinco, pois a Kel, uma boquiana “não cantora”, também foi para Londres.
 Perdas complexas e insubstituíveis, principalmente para um evento daquela envergadura. Mas por tudo aquilo que foi construído por eles e por nós, decidimos seguir em frente com nossos projetos musicais. Felinianamente falando, “E la nave va” ...

Escolhemos um novo repertório, aproveitamos algumas peças já preparadas, adequamos tudo às exigências do concurso e arregaçamos as mangas para o preparo do repertório e para a arrecadação de fundos destinados à compra de passagens e hospedagens. Aí todo o filme retrocedeu: feijoadas, concertos pagos, saraus, poupanças ... toda aquela mágica para se capitalizar em um país completamente alheio às questões da arte e da cultura.

 O Brasil quebrado financeiramente, políticos corruptos fechando os cofres aos patrocínios culturais, empresas demitindo ... dessa vez a barra foi pesada!! Amilcar assumiu novamente a complexa e difícil função de coordenar os contatos com os organizadores. Com a competência de sempre assumiu a enxurrada de e-mails com a organização do Grand Prix of Nations.
A outra questão era repormos com novos cantores a imensa lacuna deixada por nossos companheiros de tantas aventuras. Se na questão humana a lacuna era permanente, na questão musical o complexo repertório exigia outras vozes.  
Entrar para o Boca Que Usa é sempre uma questão complicada. Não só pela responsabilidade musical, mas, principalmente, pelos aspectos humanos e pela dinâmica peculiar do grupo.
 O Boca é uma família complexa e os laços afetivos guiam boa parte das nossas escolhas e dos nossos sonhos. Às vezes discutimos um compasso ou uma linha melódica por um longo tempo. 
As interpretações são sempre temas que caberiam em tratados filosóficos ou antropológicos! Mas é assim que funcionamos e que resolvemos (e sempre resolvemos) nossas questões musicais.
 Não é qualquer um que consegue trabalhar assim. A maioria dos músicos prefere uma direção organizada, com tudo mastigado, trazida por um regente tradicional. 
Aqui seguimos a lógica do caos. Estamos mais perto do conceito físico de Entropia, do que do conceito de ordem e racionalidade. Mas o acaso também dá as ordens no Boca e começamos a repor as peças.
O primeiro a entrar foi Jorge Miguel, exímio pianista, excelente músico, com quem convivíamos todos os anos nos encontros de coros de Cabo Frio. 
No encontro de 2015, entre papos e cervejas, fizemos a ele o convite para reforçar nosso bravo naipe de tenores, que recentemente tinha perdido Lucci, e ele topou! Entrou como se já cantasse no Boca desde os primórdios do grupo. Encaixe perfeito na filosofia “Boquiana”.

Depois entraram juntos Vítor e Pedro. Fizemos um concerto no salão Leopoldo Miguez, Na Escola de Música da UFRJ. Os dois estavam na plateia. Eram alunos de música da UFRJ e cantavam com o Duda no coral da Universidade. Gostaram do trabalho, foram assistir ao nosso ensaio e saíram de lá com partitura na mão e já integrados aos naipes. Vitor reforçou a tenorada e Pedro substituiu Jero no naipe de baixos. Grandes aquisições! Eles entenderam rapidamente o espírito do grupo.  Já em 2016, entrou Luizinho.  
Experiente regente dos coros do Centro Educacional de Niterói, entrou reforçando o naipe dos baixos. Estávamos quase prontos para nossa performance em Riga. Entretanto faltavam ainda um contralto e um soprano. Conversamos com Flávia e com Elisa, que já estavam na Europa, e passamos a ensaiar com elas via Skype!! 
Fato inédito na preparação do Boca. Se não era a formação ideal, ao menos conseguíamos estar juntos virtualmente! “Santa tecnologia Batman!!!” diria o “menino prodígio”. Fato completamente impossível num coro tradicional, mas no Boca Que Usa não!!

Os ensaios funcionaram bem, e quando nos reunimos na Europa, vimos que tudo aquilo valeu muito a pena! Pelo tempo de canto junto e pela nossa afinidade humana e musical, quando Flávia, Elisa e Raquel se juntaram ao grupo, parecia que elas nunca tinham se ausentado.
Nos preparativos no Brasil, o que estava pegando era a questão da grana. O país na maior crise, os poucos voos para a Europa estavam caríssimos, países bálticos bombando de turismo no verão de 2017 ... perigava alguém ficar de fora. Fomos bater nas portas dos poderes públicos tentando alguma ajuda com concertos ou patrocínio e nada ... Tive uma frustrada reunião com um, agora ex-secretário da prefeitura de Niterói, que foi lastimável. 
Sequer viu nosso projeto ou ouviu minhas argumentações sobre a importância de um grupo de Niterói (o único participante de toda a Latinoamérica) nesse evento. Chorou tanta miséria que pensei em dividir um pouco da nossa magra caixinha para ajudar a secretaria dele. Mas depois, mais próximo à viagem, algumas pessoas da Prefeitura se sensibilizaram e nos ofereceram espaços para concertos futuros.

 Em meio ao caos, a Giana teve a brilhante ideia de organizar uma “Vakinha” on line e aí foi a nossa grande surpresa. Uma grande mobilização de amigos, familiares, antigos companheiros de coro, amantes da música coral, etc. começaram a contribuir e, num movimento emocionante, conseguimos levantar uma grana e levar o coro inteiro para Riga. 
Aos nossos amigos “patrocinadores” criamos um vínculo de gratidão e de afeto que a todo momento nos emociona. Doações de R$ 10, 100, 500 ... coisa impressionante de se vivenciar. Levamos para o concurso muitos corações junto aos nossos e isso mudou nossa forma de conduzir o nosso trabalho a partir daí. A todo o momento lembrávamos dessa responsabilidade lá.




 Embarcamos todos naquela louca aventura “Bocaleone”. Além dos cantores, faziam parte do “Boca não cantante” Dona Heloisa, Mariana, Cândido e Marcelo. 
Peças fundamentais em toda a nossa aventura. Também, é claro, tinha as crianças, representantes do “Boca Júnior”sem as quais a viagem não seria tão família: Ítalo e Gregório. Caco e Lina, num ato de heroísmo, carrinho de bebê a punho e sem babás, levaram os dois sem pestanejar. Ítalo, já um veterano de concursos internacionais, trazia em sua bagagem duas medalhas de ouro, ganhas em Calella. Greg iniciava sua longa saga, em território báltico. Juntaram-se ao grupo, em Riga, Raquel, Flávia e Elisa, num reencontro emocionante! Jero e Lucci não conseguiram vir, por questões profissionais. Pronto, estávamos finalmente completos e respirando o mesmo ar. Todos em Riga, representando o coro que viajou a maior distância para fazer parte do concurso.
A adaptação foi estranha. Seis horas de fuso horário, e um dia de 20 horas de sol e claridade e 4 horas apenas de noite. Mas todo mundo animadíssimo. 

A cidade de Riga respirava canto coral e seu centro histórico estava ocupado por mais de 10 mil coristas e por quase duas centenas de coros do mundo inteiro. A agenda era apertada e com muitas atividades diárias. Logo na primeira manhã tínhamos um concerto compartilhado com outros coros em um pequeno auditório mantado próximo à base de organização da Interkultur. 


Lá já sentimos a magnitude do evento, com dezenas de coros transitando pelo belo parque, onde se ouvia dezenas de idiomas e de sotaques, a maioria desconhecida de nós. Cantamos um repertório mais POP, com algumas músicas brasileiras que fizeram grande sucesso com o público ouvinte. 

Fomos filmados, demos entrevistas à televisão local e cantamos uma música em Leto ensinada na hora para o grupo pela repórter da TV.  
Ficamos em um hotel distante do centro, por óbvias questões de custo, mas bem confortável. Com o crachá nós tínhamos acesso gratuitamente a todos os serviços de transporte público, fato que facilitou bem a vida por lá.

Fizemos alguns ensaios para juntar as vozes “ao vivo” com Flávia e Elisa e procuramos descansar bem o corpo e as vozes em um clima bem seco e após mais de 15 horas respirando o péssimo ar nos aviões. 
Nesse dia passamos o som na Catedral de San Pedro, local da competição sacra. Foi uma experiência emocionante cantar novamente em uma catedral gótica.


 Construída no século XIII, com uma arquitetura bem diferente do gótico tradicional da Europa ocidental, a igreja possuía uma acústica perfeita para as peças sacras. Ficamos muito impressionados com a beleza do templo e com sua sonoridade para a música vocal. 

Nesse dia teríamos o desfile das delegações nas ruas do centro histórico de Riga. Aí, para a nossa surpresa, encontramos assistindo o evento a nossa querida e respeitável maestrina de coros juvenis, Patrícia Costa, regente do consagrado coro “São Vicente à capela”, aqui do Rio. A presença da Patrícia nos encheu de alegria e confiança naquelas terras distantes.
 Encontrar a Patrícia em Riga, em meio àquela Babel toda, foi realmente uma alegria. Ficamos juntos durante todo o concurso e sua presença lá era uma espécie de “porto seguro”, um “amuleto” ou melhor um “muiraquitã” de boa sorte a todos nós. Mesmo com tanta experiência em viagens internacionais para concursos corais, aquilo era algo muito maior que tudo o que tínhamos participado até então. Algo belo, mas assustador pela imponência e pelo tamanho do evento.
Participamos de um emocionante desfile nas ruas históricas da cidade velha de Riga em meio a muitos aplausos. Desfilamos logo atrás de um coro da Áustria, com uma coreografia profissional. 
Gente com passos marcados, movimentos de bandeiras e tudo o mais. Num espírito bem brasileiro Duda improvisou uma coreografia em passos de Axé e rodadinhas que fizeram o maior sucesso e a galera se divertiu muito dançando os “passitos dudianos”!! Vitor segurando a placa do Brasil, Márcia, Ana e Pedro com bandeiras ... a galera com cachecol verde e amarelo. 
Ao termino do desfile, todos os coros se aglomeravam na praça em frente ao Monumento pela liberdade, praça histórica e local de importantes concentrações culturais de Riga, onde ouvimos concertos, discursos e uma linda canção entoada espontaneamente pelos milhares de participantes da cidade que assistiam ao evento e que produziram um coro afinadíssimo e emocionante. Emocionante também foi a homenagem, feita pelos organizadores, ao coro Boca Que Usa, do Brasil, como o grupo que veio do local mais distante para participar do evento. Foi igualmente lindo recebermos flores de uma senhora, anônima, que gentilmente distribuiu tulipas às meninas do Boca.
No terceiro dia tínhamos um compromisso em Rezekne, uma cidade localizada próxima à fronteira da Rússia, cerca de 4 horas de viajem de Riga. Aceitamos o convite ainda no Brasil, empolgadíssimos com a oportunidade de cantarmos em Gors, um impressionante complexo teatral e um dos mais importantes teatros da região báltica. O centro cultural recebe os principais eventos musicais do calendário letoniano. Quando aceitamos o compromisso, por inexperiência, não sabíamos ao certo qual seria a data da apresentação. 
A organização nos programou para a véspera das nossas competições, fato que prejudicou bastante nossa concentração e nosso desempenho vocal no concurso. A estrada que liga Riga a Rezekne estava em obras e levamos um tempo enorme de quase seis horas para retornarmos a Riga. Chegamos de madrugada ao hotel e descansamos pouco na véspera do concurso. Isso foi fatal. Mas foi muito prazeroso ter viajado pelo interior da Letônia e ter cantado em Gors.








Apresentamos no teatro com o coro infanto-juvenil da Suíça, que havia acabado de ganhar uma medalha de ouro na categoria “coro jovem”, e estavam comemorando seu prêmio nesse concerto. Já tinham encerrado sua fase competitiva. O teatro (grande) estava completamente lotado pela população local e nossa apresentação foi muito impactante positivamente, tanto aos coristas da Suíça quanto aos ouvintes locais.
 
Quando cantamos Milestiba, uma composição em leto, que fala do amor, podíamos ver muitas pessoas na plateia chorando. Isso não tem preço! Fomos muito elogiados, Lina deu entrevista à TV local, e retornamos numa infindável viagem até Riga. Ficam as boas lembranças e as intermináveis lições.

No dia seguinte, bem cedo, já estávamos a postos para passar o som no teatro da Universidade de Riga, onde ocorreria o primeiro concurso: música erudita para coro de vozes mistas. 

Passamos o som em um teatro que possuía um átrio, iluminado por uma grande claraboia, com colunas laterais e espaço para uma grande plateia. Pra variar, uma excelente acústica. Passamos o som em exatos 15 minutos, nem um segundo a mais era permitido. Saímos do teatro e ficamos nas cercanias aguardando a nossa hora de botar para fora tudo o que preparamos ao longo dos ensaios. Não foi possível assistir os coros que nos antecederam. O teatro não cabia nem uma mosca. Mas creio que isso foi bom. Aguardamos por cerca de 30 minutos numa antiga sala da universidade, estilo art déco, onde, relaxamos, concentramos, nos abraçamos, e conversamos muito. Vinha à nossa mente os amigos que nos ajudaram na vakinha. Levávamos conosco a confiança de tanta gente amiga. 

Também falamos dos nossos antigos mestres de canto coral. Elza Lakschevitz, Ermano Sá, Antonio Vaz, Carlos Alberto, Samuel Kerr, Oscar Escalada, Ruy Capdeville ... tanta gente que de algum modo havia contribuído para estarmos ali, no meio daquelas feras todas, como único representante da América Latina.
 E, com aquele sentimento de pertencimento a algo muito maior, e muito felizes por estarmos num evento daquela magnitude, entramos finalmente no palco.
Nove atentos jurados nos olhando impassíveis. Alguns já nos conheciam em concursos passados. Tinham feições mais amigáveis. Outros totalmente insensíveis. Entramos com serenidade e confiança. 
Encaramos os jurados e a plateia e encontramos, logo na frente, nos olhando com a mais bonita das expressões faciais, a Patrícia Costa! Ufa! Alivio!! Um rosto conhecido e amigo na plateia. No familiar sorriso da Patrícia, nos dando a maior força, nos apegamos e fomos fazendo peça a peça. Monteverdi, um pouco tenso. Milestiba abriu um portal e um canal de comunicação com a plateia e com o jurado da Latvia. Tinha muita gente chorando de emoção na plateia ao ouvir essa peça. Ficamos mais confiantes. Water night foi um pouco aquém do que acostumávamos apresentar, mas foi bem. 

Irerê foi muito abaixo do que estávamos acostumados. Música longa, coro duplo, exige sempre muita energia, aí, os muitos quilômetros da véspera pesaram um pouco. Ofulú foi uma música arrebatadora! Deu uma pancada na plateia e nos jurados e foi a nossa maior pontuação nessa primeira competição do Grand Prix. A música brasileira tinha cumprido a sua parte!
Saímos do concerto com uma sensação de que fomos bem, mesmo não atingindo nosso melhor. Isso ficou claro. Mas não era hora de pensar no que passou. Tratamos, da melhor forma possível, de reorganizar nossas forças e nossa concentração, pois no final da tarde tínhamos outra pedreira ainda maior. O concurso sacro. Chegamos à Catedral uma hora antes e tratamos de nos concentrar da melhor forma possível. 

Sentíamos nitidamente o cansaço da longa viagem a Rezekne, o frio vespertino e as condições do ar. Mesmo no verão, quando o sol baixava o frio era intenso para um coro carioca acostumado às altas temperaturas do Rio de Janeiro. Relaxamos, fizemos exercícios respiratórios e nos concentramos. Ao entrarmos na catedral, o forte cheiro de incenso e a secura do ar imposta pelos aquecedores ressecou muito nossas gargantas. Isso foi bem difícil. As vozes falhavam, quebravam e não obedeciam ao nosso comando. Mas mesmo assim mantivemos a concentração. Bogoroditse dievo foi uma peça de adaptação. Fizemos bem abaixo do que estávamos acostumados. Recuperamos um pouco o controle vocal em Crucifixus e nos estabilizamos em Ave Verum, uma ótima
interpretação, com uma boa pontuação. Deus qui illuminas, igualmente, teve boa performance. Encerramos com “o Magnum Misterium”, que obteve uma excelente nota. Nossa maior nota no evento. Depois vimos que ficamos muito próximo do ouro ...

Uma vez mais os “bocas não cantantes” nos deram aquela força antes, durante e depois das apresentações. Cândido e Marcelo fotografando tudo, Mariana e Raquel sempre presentes e dando ajuda com as crianças e nos apoiando.  Helô também presente com sua torcida.

Patrícia sempre conosco, dando muita coragem e energia para o grupo. Já entramos na catedral procurando o seu rosto amigo. No final profetizou que ganharíamos medalhas.  Ficamos descrentes. Saímos da catedral com a sensação que poderíamos ter ido bem melhor, apesar de termos feito uma ótima apresentação.  Essas exigências sempre foram uma marca do Boca. Mas no fundo estávamos felizes pelo dever comprido. Não tínhamos feito feio não. Estávamos no nível da maioria dos coros. E isso é muito para uma ilha coral chamada Brasil. Não podíamos esquecer isso e Patrícia Costa, uma vez mais, nos puxou para a realidade lembrando de onde vínhamos e onde estávamos. Falou da importância de estarmos ali, naquele mega evento, participando e, o principal, aprendendo e representando o Brasil e a Latinoamérica.
Descemos a um Pub medieval, nos subterrâneos da cidade histórica, levados pela nossa eficaz e competente guia, a Liva. E agora, sem quaisquer compromissos, à medida que tomávamos umas cervejas a adrenalina ia baixando começávamos a nos dar conta do tamanho e do peso dessa aventura.
Estávamos muito felizes e nos permitimos finalmente relaxar e festejar muito. Na sala do pub que estávamos tinha tinha umas arcadas medievais e no fundo um piano, que passou de mão em mão. Terminamos a madrugada tocando e cantando música brasileira para uma plateia de várias partes do mundo, mais que empolgada com as músicas de Jobim, Milton, Nazaré, Zequinha de Abreu, Dorival Caymmi ... Saímos de lá com o corpo e a alma lavada!! Fizemos a festa!
No dia seguinte, no meio da tarde, seria a cerimônia de encerramento. O evento foi realizado na Arena de Riga, um imenso ginásio poliesportivo com capacidade para milhares de pessoas. Ali foi possível dimensionar o tamanho do evento. Uma festa de proporções olímpicas, hollywoodianas, com direito a pirotecnia, telões, efeitos especiais, canto coletivo, orquestra e um coro de mil vozes. Nos concertos de encerramento, assistimos peças compostas e regidas pelos principais nomes mundiais da música coral, como John Rutter. Muitas foram compostas especialmente para o evento. Teve também um belo desfile feito por atores com roupas típicas e aludindo costumes dos países participantes. Foi emocionante ver o Brasil representado lá, em meio às principais nações do mundo. Num momento de profunda baixa da autoestima nacional, estávamos lá, nos orgulhando de nossa origem e sonhando com um Brasil melhor. Sem dúvidas fizemos a nossa parte.

Na entrega de prêmios eu e Lina, na condição transitória de diretores do Boca naquele evento, ficamos isolados da galera, aguardando angustiados se seríamos premiados ou não. Primeiro foi a categoria de música erudita para coro misto. 



Quando chamaram o nome do Boca, com a prata, foi uma alegria geral! Ficamos contidos formalmente no palco, mas no fundo tínhamos a plena alegria do dever cumprido.

Em seguida a música sacra, categoria mais disputada e aberta a todos os coros. Mais uma vez a prata!! Emoção incontida! Passava na mente, novamente, um filme de nossa longa trajetória. Depois foi correr para o abraço com a família BQU!! Fomos sentindo aquela energia boa após tanto tempo de trabalho e dedicação. Nossos velhos mestres, onde quer que estejam, e nossos amigos de sempre certamente não se decepcionaram. Estávamos muito contentes com esse aprendizado único, em um evento de proporções gigantes no mundo coral. Patrícia Costa já tinha ido para a Polônia, mas sua presença e profecia da medalha seguia nos acompanhando o tempo todo.


Deixamos a poeira baixar, seguimos viagem, voltamos ao Brasil, e lentamente fomos entendendo a importância de termos ido a Riga e participado do Grand Prix of Nations. Um sentimento que gera movimento. Já estamos pensando no próximo concurso, no ano de 2019. Mais maduros, mais experientes, mas com o espírito cada vez mais jovem. Muitos corações que pulsam em busca de novas aventuras. Talvez o mesmo espírito que movia Sancho Pança e Don Quixote nas aventuras pelo mundo. Agora vamos para a próxima aventura. Essa que descrevi já faz parte das nossas histórias. Quixotescamente falando: “seja passado o passado. Dobra-se uma vereda e pronto.”